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Continuação do livro Memórias de um Etíope, lançado em 2001:

O “ expert”

“Vinde! Vinde! Meus Jesus, habitar meu coração. Neste dia tão ditoso, da Primeira Comunhão”.

Naquele domingo, 27 de novembro de 1955, pela primeira vez, alguma professora do Colégio Santa Úrsula inventara uma música nova para ser cantada pelos que estavam fazendo a Primeira Comunhão. O trecho acima é uma das partes dessa música. Por coincidência, foi também dia do batizado de um de meus irmãos. Festa dupla em família católica.

Preparei-me com muita alegria, durante o ano todo, para aquele dia tão importante. Queria convidar o mundo todo para vir. Foi, até então o dia mais importante de minha vida. Com que carinho minha mãe preparou tudo. O terno azul marinho, o sapato de verniz preto e aquela fitinha com o símbolo da eucaristia que os meninos usavam até uns vinte anos atrás, na manga direita do paletó.

(Engraçado, lembro-me bem, naquela noite cheguei a pegar meu sapato novo que estava no chão e lamber a sola dele, no intuito de que ele permanecesse sempre novo. Que falta de gosto, poderia ter levado um paninho molhado, em vez de usar a língua para este fim inglório… Quem sabe não se faz agora uma analogia, querendo dizer que Jesus permanecesse sempre como algo novo em minha vida e nunca perdesse sua atualidade…)

Não consegui dormir na véspera do grande dia. Acordei cedo, vesti minha roupa e rumei para o colégio. Lá iam se encontrar todos os que fariam a Primeira Comunhão. Somente as pessoas daquela escola fariam naquele dia. Aliás, era mesmo assim. Tudo determinado por escola. Inclusive as aulas de catequese também eram dadas no lugar onde se estudava. Meu horário era sábado à tarde. Eram muito rigorosos os critérios para permitir receber ou não o sacramento. Qualquer deslize, uma simples briga com algum colega, podia valer a expulsão da catequese. Aí, o receber do sacramento era transferido para o ano seguinte. Era um exagero! Também acho que era muito cedo deixar as crianças receberem a comunhão com apenas oito anos de idade. Hoje os critérios são melhores, as catequeses mais aprofundadas e por mais tempo. Também, o que se podia esperar, de uma Igreja que não concedia aos fiéis o direito de ler a Bíblia? Bíblia era coisa de padre e de protestante.

Na hora em que estávamos todos enfileirados, à entrada da igreja, prontos para entrar, como num casamento aproxima-se o pai de um colega. Metido a conferir a roupa de todo mundo, diz que a tal fitinha deveria estar colocada no lado esquerdo do paletó e não do direito. Em vez de confiar em minha mãe e em todos os outros que a estavam usando do lado direito, acreditei no cara, por ser o pai de meu melhor amigo.

Assim, permiti que ele trocasse minha fita de lado. Lá foi ela, para o lado esquerdo. Na hora da entrada, minha mãe aguardava ansiosa para ver seu lindo filho entrando, todo arrumadinho, como todos os pais sonham e acham de seus filhos. No entanto, para sua surpresa, entram todos com a fita do lado direito e apenas eu e mais um usando-a do lado esquerdo. E assim foi…

Foi um dos únicos dias na vida em que vi minha mãe brava e perdendo a esportiva. Até de noite, ela falava:

– Chega na hora, entram todos certinhos e bonitinhos, com a fita do lado direito e você e o Fulano com a fita do lado esquerdo só porque o pai dele quis trocar. Ai, meu filho, como você me envergonhou! (Embora concorde com minha mãe, acho que a grande maioria das mães preocupa-se muito com o que o povo vai pensar. Não acho que isto é uma coisa tão importante assim. As mulheres, no afã de ver as coisas todas certinhas, são muito exageradas. Devem sofrer muito com isto…)

Nota: o filho do “expert” é meu amigo no Face mas nem deve imaginar que isso se passou.

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