Mais um ano que se passa com a esperança de que tempos melhores estão por vir e todos nós teremos nossas listas de promessas para o ano novo. Muda-se o calendário, renovam-se discursos, multiplicam-se expectativas mas permanece uma persistente desconexão com a realidade a cada ano que se encerra e os festejos de réveillon ajudam a alimentar essa ilusão com as promessas de recomeços instantâneos.
A propaganda do chinelo mais popular do Brasil feita para o natal deste ano trouxe uma tormentosa projeção do que como serão as eleições de 2026 para presidente da república, governadores, senadores e deputados federais e estaduais. A propaganda em questão pode ser interpretada como crítica social, militância disfarçada ou apenas marketing, mas os seus efeitos revelam que esse debate ruidoso diz menos sobre publicidade e mais sobre um país que já começa o ano de 2026 sob tensão.
Tanto no campo político quanto nas nossas realidades íntimas, a mudança não vem sem uma grande dose de responsabilidade e consciência. É justamente aí que se impõe a necessidade de pés no chão. O problema não está em desejar um ano melhor, mas em acreditar que ele virá pronto, automático, embalado em campanhas, discursos ou promessas genéricas.
Na letra da música Happy Xmas (War Is Over) de John Lennon essa crítica à ilusão da virada mágica aparece de forma direta nos versos “war is over, if you want it” (a guerra acabou, se você quiser). Lançada no natal de 1971, essa canção refletia o desejo do músico em passar uma mensagem de paz para o mundo (A very merry Christmas; And a happy New Year; Let’s hope it’s a good one; Without any fear – Um feliz Natal; E um feliz Ano Novo; Vamos torcer para que seja um bom ano; Sem medo algum)
Não é um desejo ingênuo, é uma provocação. Lennon desloca a responsabilidade da data simbólica para a consciência e a ação humana (“se você quiser”). Nada muda apenas porque o ano muda. A realidade só se transforma quando existe disposição real para enfrentá-la, exatamente o oposto da esperança desconectada.
Na literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade talvez tenha sido um dos mais lúcidos intérpretes dessa desconfiança. No poema Receita de Ano Novo, publicado no ano de 1977, Drummond desmonta a ilusão de que o simples virar da folhinha resolve o que foi mal conduzido ao longo do tempo, impondo a cada um o peso da responsabilidade:
Para ganhar um Ano Novo, que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo(…)
O poeta propõe algo profundamente atual ao entoar que o ano novo não é uma receita pronta para ser consumida, mas uma construção que não começa no calendário, mas na consciência, soando quase subversivo ao lembrar que esperar tudo do tempo é abdicar do dever de agir no presente. Talvez seja exatamente essa falta de conexão com a realidade que alimente tantas frustrações coletivas, projetando-se demais no futuro a solução dos problemas de agora.
Entre a esperança e a ingenuidade existe um espaço onde se encontram a responsabilidade e a lucidez que traduzem a expressão “com os pés no chão” e que promovem a conexão com a realidade. E talvez nenhum encerramento (deste artigo e deste ano de 2025) seja mais honesto do que o do próprio poema de Drummond em Receita de Ano Novo:
“Para ganhar um Ano Novo; que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”
Por Robson Soares de Souza – Instagram: @robsonsoares.adv






