5/7/82, segunda-feira, Espanha
Era uma manhã tranquila e fria em São Lourenço. Aliás, bem tranquila. Parecia que estava tudo parado, poucas pessoas nas ruas, lojas vazias e as ruas todas enfeitadas.
Meu saudoso sogro vivia seus últimos dias de vida.
Lembro-me de que saí para caminhar e fiquei observando as faces das pessoas, preocupadas, mas esperançosas. Lembro-me inclusive de quem encontrei e com quem conversei, também a respeito do jogo que seria à tarde.
Tínhamos uma das melhores seleções já formadas. Dava gosto ver aquele futebol.
Três dias antes havíamos vencido a seleção da Argentina por 3 a 1 e jogando um grande futebol.
Eram tempos de ruas mais pintadas e casas mais enfeitadas em homenagem à nossa equipe.
Tempos em que se usava mais juntar pessoas para assistirem aos jogos juntos.
O frio convidava a fazer um café regado e muito bolo, pão de queijo e afins.
Morávamos ainda na primeira casa enquanto casados e que hoje não existe mais. Filhos ainda não tínhamos.
A confiança na vitória no jogo contra a Itália, que também tinha um time bom era muito grande.
E chegou a hora…
Bastava-nos o empate para irmos à semifinal. Como não acreditar?
Logo no começo, Paolo Rossi marcou. Mas Sócrates empatou 7 minutos depois. Não demorou muito e Paolo marou seu segundo gol. O primeiro tempo terminou com a vitória italiana por 2 a 1.
Eu mantive minhas esperanças, assim como, acredito, boa parte dos brasileiros.
Até que aos 23 do segundo tempo, vieram o delírio, o foguetório, os gritos, as comemorações. Falcão empatou. Não nos restava mais nada, a não ser tentar manter o placar. Lembro-me até hoje da cena do Falcão comemorando.
No entanto, o Brasil, em vez de tentar se defender continuou lutando pela vitória.
E seis minutos depois do nosso segundo gol, lá veio Paolo Rossi, nosso algoz, desempatando jogo, para nossa tristeza.
Tentamos, mas não logramos o empate de novo.
E o jogo terminou…
Fomos eliminados, chorei, choraram muitos, tanto no estádio como no Brasil todo.
Para mim foi uma das maiores tragédias da vida de torcedor. E nunca me esqueci daquela tarde.
E o grande Carlos Drummond de Andrade nos presenteou com essa linda crônica:
“Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.”